26 setembro, 2008

/uma fotografia, um nome\

José Manuel Rodrigues, Máscaras

Habitualmente realço em José Manuel Rodrigues a especificidade simbólica e alegórica das suas fotografias: aquele iniciático enredamento do feminino-masculino, os signos dos quatro elementos, a imponderabilidade temporal das suas imagens sempre marcadas pela transfiguração.

Esta imagem é relativamente recente e vejo nela uma síntese do que a fotografia representa hoje e das polémicas que tem suscitado. Porque afinal o fotógrafo, que foi fundador e determinante na Perspectief holandesa, sempre se mostrou como um experimentador fotográfico, precisamente naquela linha que Jeff Wall determinava para a fotografia actual, como reveladora da consciência histórica do meio técnico e, naturalmente, do autor.

Nesta produção, as máscaras são o motivo. O que revela logo o nó górdio que é a aparência fotográfica. Diz quem sabe que imago é o duplo do vivente, mas a sua máscara funerária de cera, obtida post-mortem é, e já não é. Só representa. Em todo o caso, como duplo é também a figura tutelar, suficientemente apaziguadora quando, ao que diz a religião romana, se tornar um terrível espírito severo e infernal.

A imagem fotográfica, nomeadamente o retrato, ganhou essa capacidade de apropriação, guardamo-la com a posse que não conseguimos obter de quem a representa. Aqui, nesta imagem, o fotógrafo, fiel ao seu estilo, resguarda a geometria da sua concepção do real, utilizando o plano que o divide equatorialmente; consegue assim dar dessa realidade a confluência do ser e do não ser, do equilíbrio e do caos, do uno e do múltiplo, aquilo a que chamamos harmonia.

Mas no primeiro plano vemos um guiador de bicicleta que se enleia com o seu reflexo, entrosando-se com o que parece uma cadeira de jardim e uma das duas figuras reflectidas no vidro do que parece ser uma montra. Num plano atrás de nós, uma fila de bicicletas estacionam no passeio que antecede a série de casas truncadas. Tudo cria uma sucessão de planos impossíveis do dentro e do fora. Nós estamos no lugar da câmara, talvez se vejam detalhes do saco do fotógrafo, no passeio, um outro passeio que não vemos; estamos provavelmente bem perto da bicicleta que reflecte o seu guiador no vidro. É um dos efeitos da reflexão teórica que Wall introduziu com a sua imagem Retrato para Mulheres, onde produz a versão fotográfica e, por isso, contemporânea, remake de Bar nas Folies-Bergère, de Manet.

Temos aqui o vidro que permite esta concepção de herança e actualização da perspectiva pictórica, que as câmaras reproduzem. A transparência da fotografia, porque dizem os realistas, a imagem se cola ao real, desaparece: olhamos, no vidro, o que está por trás de nós e é com esforço que entendemos o que se passa e com esforço que compreendemos que ficou anulado o plano pictórico binocular que o meio, (a câmara) foi industriado para nos dar, bem ao modo da perspectiva do Renascimento, onde caminhamos pelo seu interior.

Aqui reflecte-se o exterior, sobrepondo-se ao interior, sabendo que tudo se passa por trás de nós, estamos fora. A materialidade mais realista, as máscaras, são máscaras, aparência. A imagem fotográfica poderia ser transparente, mas as convenções da prática fotográfica e a utilização da câmara, tornam-na opaca. O que aqui se desmonta é a convenção da foto como janela aberta sobre o mundo, o desengano sobre a transparência da fotografia.

Mas um olhar estético deixa-se cativar pelo plano pictórico. Deixamo-nos seduzir pelo que na imagem é convocado. A sedução da imagem, interrompendo-nos, faz-nos debruçar sobre as contradições da transparência da fotografia, poderia ser um bordão pedagógico. Os brancos luminosos dão-lhe a força da caixa de luz, a linha horizontal impede a anomia, o desequilíbrio; mas passamos logo à inquirição, ao problema da sua transparência. Sabemos, hoje, que a imagem artística é válida, quando revela a consciência histórica do meio utilizado. O olhar estético não é fruidor de forma passiva.

Mas o que fica desta imagem, quando a esquecemos, são as máscaras, iguais e diferentes, aterradoras se as vemos e intuímos a força desestabilizadora da sua presença sequencial.
São elas que ficam, que voltam, que prometem. As convenções da prática fotográfica fazem a opacidade da fotografia, os conceitos de arte e de belo tornaram-se, ao que se diz, uma convenção. Mas guardo na memória esta imagem pela evocação das máscaras, chamei-a por pulsão. A desmistificação do nosso modo de olhar é, naturalmente, um corolário perceptivo, um prazer menor.

Maria do Carmo Serén

1 comentário:

Anónimo disse...

Também gostamos daquelas editadas e comentadas pelo jornalista Sérgio Gomes, de algum modo relacionadas com assuntos actuais, como foi o caso daqueles postes relativos aos jogos olímpicos, mas com um cunho mais pessoal, apesar de discreto. Apareça!

Saudações.

José Manuel F. Vidal

 
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