21 novembro, 2008

/uma fotografia, um nome\

Manuel Valente Alves, Le temps retrouvé
© Manuel Valente Alves

Fotografar não é apenas “o acto fotográfico” como quer Philippe Dubois. É também o depois, o muito depois: seleccionar, escolher o suporte e, cada vez mais, cortar, manipular. Porque é este hoje o tempo da fotografia e, como nós, a imagem não se quer imutável.

Mas no acto fotográfico há ainda o enorme “antes”, mais ou menos atento, mais ou menos denso. Faz-se uma imagem porque sim, porque se tem uma câmara ou porque cá dentro tudo se conjuga e a síntese parece estar ali, naquele momento. E a imagem, esta ou aquela, trazem consigo um pouco do mundo irredutível à captação.

Manuel Valente Alves habituou-nos à solidez do seu conceptualismo; por vezes militante, extremamente conceptualizado ou minimalista, obrigando a libertar o olhar da forma e procurando o sentido. Uma chamada de atenção para o nosso descontentamento ou uma hipótese de descoberta de uma cultura que abandonara a natureza do mundo. Vindo da pintura, recusou as gavetas do estilo e definiu os recursos das artes como um código de pesquisa e decifração.

Mas num pintor, o que faz a sublimação das pulsões pode ser a cor. E é com o olhar de pintor que Manuel Valente Alves construiu esta imagem. Os azuis são quase impressionistas porque a refracção do ar os liquefaz, mas a intensidade ambígua do céu e os reflexos amarelos da luz fazem lembrar a intemperança de William Blake: estes vultos indeterminados seguem em frente inconscientes do abismo. O céu deste entardecer tem a cor de uma estação que envelhece.

O que a fotografia nos diz é muito do que queremos ver.

A composição fotográfica, definindo um espaço cénico, pode ser como o espelho de Alice, a vida é aí que reside, tão arbitrária ou louca como a que deixou para trás. Não interessa a ausência, a nossa recusa do realismo perfeito, o selo do pretérito que a qualifica. Com ou sem perspectiva cónica nós entramos no espelho, seguimos o anzol do enigma. Somos, para a imagem, o seu mundo invisível, mas também o caçador que persegue a presa. E aí o suporte deixa de interessar, papel ou digital, uma parede, um livro ou um ecrã, a imagem é o jardim secreto dos nossos sustos ou das nossas memórias.

Nem mesmo a fixidez da imagem pode esconder a vida que a anima, o movimento que suspendeu. Nem a (calculada) distância percorrida, abrindo um espaço de sedução entre nós e os ciclistas que rodam, lhe retira a realidade. A composição e o enquadramento que são o seu autor – e que nos dão o passaporte para a descoberta e a empatia – abrem uma totalidade enfeitada de detalhes onde nos procuramos: a fotografia é, antes de tudo um modo de existência, está ali porque o acontecer esteve ali.

Mas construir um jardim secreto é um recurso à poesia e à ilusão perceptiva, do fotógrafo e do observador. O perigo é a contemplação, que não faz mal a ninguém, mas que nos tira a liberdade do olhar.

Maria do Carmo Serén

Manuel Valente Alves é médico, professor, editor e fotógrafo.
Dirige o Museu de Medicina da F.M./U.L. e programou em colóquios e encontros (ex. O Impulso Alegórico) a relação arte e Medicina

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