23 abril, 2013

da arquitectura

Reguengos de Monsaraz, Évora



Viagem a Portugal
(Sérgio C. Andrade, Público, 6.04.2013)

"Isto não é uma exposição de arquitectura." Este podia ser o texto de um aviso à entrada da exposição de fotografia Território comum, inaugurada na quarta-feira na galeria da Fundação EDP, no Porto. Mas é preciso falar de arquitectura e recuar no tempo para entender aquilo que a tornou possível.

Em meados da década de 1950, o Governo do Estado Novo incumbiu o Sindicato Nacional dos Arquitectos de proceder ao levantamento da arquitectura das diferentes regiões do país, na procura de um modelo normativo que lhe permitisse identificar "a casa portuguesa", à imagem dos ideários nacionalistas que tinham sido cultivados em Espanha, Itália e Alemanha, sob os regimes ditatoriais anteriores à II Guerra Mundial.

Daqui nasceu o Inquérito à Arquitectura Regional Portuguesa, levado a cabo entre 1955 e 57 e editado em livro em 1961 (teria depois três novas edições). Mesmo não tendo obtido os resultados desejados pelo regime, este foi um trabalho fundamental para o que viria a ser um novo paradigma para a arquitectura portuguesa, uma base sobre a qual toda uma nova geração de arquitectos foi construindo o(s) seu(s) modernismo(s).

O Inquérito foi realizado sob a coordenação de Francisco Keil do Amaral por seis equipas de três arquitectos cada, distribuídas por outras tantas regiões do país com as suas câmaras fotográficas ao ombro. Francisco Silva Dias e António Menéres, dois dos poucos sobreviventes da equipa de 18 arquitectos-fotógrafos que entraram nessa "grande aventura", recordam ter usado, respectivamente, uma Rolleiflex e uma Agfa.

"O Salazar e, principalmente, o ministro das Obras Públicas, Arantes de Oliveira, esperavam que confirmássemos a existência de uma casa portuguesa", recorda Silva Dias, que fez equipa com Nuno Teotónio Pereira e António Pinto de Freitas no levantamento da Zona 4 - Região Oeste, Vale do Tejo e Península de Setúbal. "Esse objectivo não foi correspondido. Não havia uma arquitectura nacional, mas uma reacção muito espontânea das populações às condições do lugar onde viviam", diz o arquitecto, agora com 82 anos, mas que na altura era um jovem ainda a acabar o curso na Faculdade de Belas Artes de Lisboa.

António Menéres, com a mesma idade, trabalhou na Zona 1 - Região Norte, sob a orientação de Fernando Távora (que tinha sido seu professor nas Belas Artes do Porto e em cujo atelier já trabalhava) e com outro jovem, Rui Pimentel.

Menéres, o mais novo membro da equipa de 18, confirma a má reacção de Salazar ao resultado do Inquérito - que custou 500 contos (cerca de 185 mil euros aos preços actuais), retirados do Fundo de Desemprego. "Os governantes estavam convencidos de que iríamos "fazer" um catálogo mostrando a casa portuguesa a construir em cada uma das regiões", relata. Ao contrário, o que resultou do trabalho de campo mostrou "o que eram as respostas das populações aos problemas postos no mundo rural, cujo dia-a-dia era consequência natural do seu trabalho e da sua economia". "A arquitectura do milho, entre o Douro e Minho, exigia as eiras, os espigueiros, os sequeiros, enquanto no Alentejo as monoculturas tinham uma outra exigência, os chamados montes alentejanos, e na Costa Nova, em Mira, na pesca de xávega os pescadores habitavam em casas de madeira, construídas sobre pilares, evitando o assoreamento provocado pelas areias empurradas pelos ventos", descreve António Menéres, em depoimento via email...

Keil do Amaral e Fernando Távora - recorda Silva Dias - sintetizaram assim o resultado perante os responsáveis do Estado Novo: "Há uma superação das bases materiais", ou seja, a partir de materiais pobres - granito, xisto, madeira... -, as pessoas conseguiam construir casas com grande coerência", diz.

Foi esta realidade que ficou registada num espólio de dez mil fotografias, de onde foram seleccionadas as três centenas publicadas na primeira edição do livro em 1961. Para a actual exposição Território comum, foram utilizadas cerca de cinco mil imagens, a partir do trabalho de inventariação que a Ordem dos Arquitectos (com o fotógrafo José Manuel Costa Alves) iniciou aquando do 50.º aniversário da publicação do Inquérito (e que pode ser consultado em www.oapix.org.pt).

Renovação da fotografia

Sérgio Mah (n. Moçambique, 1970), comissário da exposição, nota que se "este espólio é fundamental para pensar a história da arquitectura portuguesa, ele é também o sintoma de uma renovação na história da fotografia portuguesa".

O comissário e professor da História da Fotografia na Universidade Nova de Lisboa nota que, na primeira metade do século XX, esta arte "praticamente não sofreu a influência dos movimentos modernistas, ou então, nos anos 1930-40, tivemos um modernismo sem vanguarda". Num meio cultural "bastante conservador e limitado", quase circunscrito à "fotografia amadora de salão, muito moldada pelo legado do naturalismo pictórico", as fotografias realizadas pelos arquitectos do Inquérito "trouxeram um olhar mais frio, directo e despojado", muito próximo já "da frente humanista que tem os seus ecos no realismo poético em França e no neo-realismo em Itália".

A centena de imagens que constitui a exposição Território comum, continua Sérgio Mah, "leva-nos a perceber que há uma dimensão criativa, de exploração da fotogenia e das ressonâncias estéticas da imagem, que foram utilizadas de uma forma muito livre e muito espontânea" por aquele grupo de arquitectos. "O que vemos nesta exposição é essa aventura da autonomia do fotográfico, da possibilidade de desenvolver uma fotografia que tem um compromisso profissional, mas ao mesmo tempo havia uma liberdade para que os fotógrafos se entregassem ao jogo das formas, da composição, da variação dos pontos de vista."

Francisco Silva Dias confirma que, de facto, "a fotografia fazia parte da cultura" dos arquitectos da época, que, por outro lado, tinham Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico (1945), do geógrafo Orlando Ribeiro, como "livro de cabeceira". E António Menéres tinha-se mesmo iniciado na fotografia ainda criança, tendo à data do Inquérito já assumido esse "vício" e registado, por exemplo, o quotidiano do porto de Leixões e de Leça da Palmeira.

Esses anos 1950 eram o tempo em que outros arquitectos, como Victor Palla e Costa Martins - que em 1959 iriam editar esse álbum fundamental para a fotografia portuguesa, Lisboa, Cidade Triste e Alegre -, mas também Sena da Silva ou Carlos Calvet, se distinguiam "por uma prática fotográfica de índole neo-realista sintonizada com os ecos da vocação humanista consagrada pela célebre exposição fotográfica The Family of Man, organizada pelo MoMA de Nova Iorque, em 1955", escreve Sérgio Mah no jornal-catálogo que acompanha Território comum (e que tem ainda textos de José Manuel dos Santos, da Fundação EDP, de João Belo Rodeia, da Ordem dos Arquitectos, e do arquitecto João Manuel Santa Rita).

Na visita em que guiou o PÚBLICO à exposição ainda em montagem na galeria da EDP, o comissário disse que a sua preocupação foi "tratar as imagens caso a caso", e olhá-las na sua "qualidade estética, para além da sua relevância temática".

São cem, todas quadradas e com a mesma dimensão (36x36cm), identificadas apenas com referência ao lugar e ao distrito. Não há autores. "O Inquérito foi um trabalho colectivo", nota Sérgio Mah. "Eles não estavam a preparar uma exposição de arte. Percebemos que os arquitectos procuram fazer imagens interessantes, mas nunca comprometendo o objectivo principal, que era tornar o território legível através da imagem".

"A fotografia era, para nós, um instrumento de análise, como o desenho e a escrita. Mas havia uma certa poética. Nós cuidávamos da luz e do enquadramento", confirma Silva Dias, que actualmente já não fotografa - "a minha máquina avariou, e as novas já não me interessam tanto" -, mas escreve e pinta, além de fazer parte da Assembleia Municipal de Lisboa.

António Menéres continua a fotografar e a expor o seu vasto espólio pessoal em diferentes lugares, desde que há quatro anos foi convidado a mostrar a arquitectura popular portuguesa no Ceará, no Brasil. Neste fim-de-semana, tem duas exposições no Alto Minho, em Ponte da Barca e em Arcos de Valdevez, onde mostra Arquitectura popular e memória do tempo e do património construído, que acompanhou o programa do Colóquio Internacional de Arquitectura Popular que hoje termina nesta última vila do interior minhoto.


Seia, Guarda


Lagos, Faro

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