16 junho, 2013

Daca e Pompeia

Giorgio Sommer


Daca e Pompeia
(Revista 2, Público, 2.06.2013)

A magnitude dos escombros dobrou-lhes os corpos mas não foi capaz de lhes impedir o abraço. Os ferros que os rodeiam mais parecem ninhos de cobras que se preparam para cravar as suas mandíbulas. E esse abraço parece agora um escudo impenetrável que nenhum veneno há-de tombar. Um escudo formado a dois para atenuar o embate, para melhor responder ao medo e ao desespero de quem se encontra no lapso de tempo em que se agiganta a certeza de que a vida vai acabar.

Podemos olhar para a fotografia de Taslima Akhter assim, de maneira heróica. Ou podemos ir por outros caminhos.

Para além de todo o drama colectivo que simbolicamente carrega, o que desconcerta na imagem de Akhter (que correu mundo há alguns dias) é o registo daquilo que foi um terno e desesperado gesto de vida, agora condenado à clausura na fotografia como representação trágica da morte. E mais do que a representação de dois corpos sem vida (um tabu há muito ultrapassado) o que nos fere sobretudo é a exposição plena de um gesto que resulta do último momento de discernimento de duas pessoas fatalmente encurraladas. Um momento que é capaz de estar mais próximo de reivindicar intimidade e ausência de imagem do que ser transformado em estandarte visual da luta contra a exploração do trabalho em Daca, Bangladesh. Foi nesta cidade que ocorreu a tragédia que, em Abril, causou mais de mil mortos, quando um prédio com fábricas têxteis ruiu. Compreende-se o "desconforto" que Akhter já confessou de cada vez que olha para a sua fotografia. É que nela não se vê só a morte. Vê-se com despudor alguém (sempre) "a morrer".

Quando descobri este momento dupla e tragicamente congelado, lembrei-me das fotografias de Pompeia que mostram cadáveres apanhados pela lava da erupção do Vesúvio (79 d.C). Na verdade, muitas destas imagens do século XIX não mostram cadáveres, mas o seu duplo feito em gesso. A maior parte das albuminas sobre este tema captadas por Giorgio Sommer (1834-1914) revelam corpos que foram moldados a partir do espaço em vácuo onde acabaram por perecer. O que quer dizer que a lava que escorreu pelas encostas do vulcão se transformou num imenso negativo de morte que nos dá acesso a um tempo muito longínquo, uma ligação ao passado que, apesar da tragédia, nos fascina. Na fotografia de Taslima Akhter é o reboliço dos materiais do edifício que funciona como molde da expressão da morte, que nos confronta com a fatalidade destas duas pessoas. E que nos dá acesso a um tempo que desejaríamos não voltar a ver.




© Taslima Akhter


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