01 junho, 2014

saramago



© João Francisco Vilhena

E Saramago tornou-se paisagem
(revista 2, Público, 11.05.2014)

Como quer que me vista?
— De preto.
— De preto, João?
— Sim.
[silêncio, como quem diz “o fotógrafo é louco!”]
— Mas pretos já são os vulcões… Bom, está bem.
E José Saramago vestiu-se de preto para a objectiva de João Francisco Vilhena. O fotógrafo não queria que o escritor se destacasse na paisagem, queria que se confundisse com ela, que se perdesse nela. E partiram, em passeio, para a zona do Parque Nacional de Timanfaya, Lanzarote, onde quase tudo é vulcânico. Faltavam poucos dias para Saramago receber o Prémio Nobel da Literatura em Estocolmo (10 de Dezembro de 1998). Esse mega-acontecimento podia ser um peso a vergar a fotografia e a condicionar o olhar do fotógrafo ao culto da personalidade. Nas imagens que ficaram dessa sessão, fotógrafo e fotografado parecem conscientes disso. Dão-nos a simbiose. Dão-nos a terra crestada, a poeira e a solidão. E parece que tentam fugir ao brilho das salas douradas que se avizinha.
Nesse dia incerto de Novembro, meteram-se a caminho dialogando, às vezes com uma câmara fotográfica à mistura, numa tentativa de captar um homem na paisagem e nunca um escritor galardoado com a mais alta distinção da sua arte, um nome que aparece nas capas de milhões de livros. Um homem na paisagem e “nas mãos de um fotógrafo”, tão-só (e tão difícil).
Depois dessa caminhada fotográfica, trabalho que viria a ser exposto em Estocolmo por ocasião da entrega do prémio, João Francisco Vilhena sentiu que a ligação que tinha presenciado entre Saramago e a terra que adoptou como sua era de tal maneira forte que decidiu voltar. Queria aprofundar uma reflexão que mostrasse como um homem se pode fundir com o espaço, como pode entendê-lo, desafiá-lo. Respeitá-lo. A “inquietação” aumentou de ano para ano. O fotógrafo sentiu que alguma coisa tinha ficado por fazer. Queria mais. Mas aquele momento fotográfico não voltou a repetir-se (na verdade, nenhum momento fotográfico volta a repetir-se).
Já depois da morte do escritor, em 2010, João Francisco Vilhena voltou, agora com um guia, os Cadernos de Lanzarote, os cinco diários que José Saramago escreveu entre 1993 e 1995 e onde foi anotando as suas reflexões sobre o quotidiano na ilha, sobre a vida, a morte e o amor. Neste regresso, o fotógrafo experimentou o vazio, apenas preenchido pelas palavras deixadas pelo escritor. “Senti-me a fazer uma viagem no tempo com ele através das paisagens da ilha, através do que escreveu sobre Lanzarote. Rever os mesmos lugares onde estive com Saramago foi violento e dei-me conta da sua ausência de uma forma muito profunda.”
O desafio maior passou por encontrar inspiração nas palavras e, ao mesmo tempo, não ficar prisioneiro delas, sobretudo por terem sido escritas por alguém com o peso de um Nobel. “Não quis fazer um exercício mimético ou de simples ilustração dos escritos. Quis dar a força de uma relação e de um ambiente muito particular, que levou alguém a expor-se em termos sentimentais de uma forma absoluta e fantástica.”
A relação que José Saramago tinha com Lanzarote era profunda. E João Francisco Vilhena compreendeu-a através das fotografias que captou, antes e depois do seu desaparecimento. “Saramago tornou-se paisagem através da sua vivência na ilha. Os habitantes relacionam Saramago com a ilha. São um”, diz o fotógrafo, que ontem apresentou em Matosinhos o livro Lanzarote — A Janela de Saramago (Porto Editora). Na Galeria Municipal, por ocasião do festival LeV — Literatura em Viagem, pode ver-se uma exposição com as fotografias que dão corpo ao livro. Nesta obra, João Francisco Vilhena pensou cada página como se fosse única, onde “há momentos em que as palavras são um sussurro e outras em que são um grito”. Como as paisagens fotográficas e o escritor que nelas habitam.



(a exposição Lanzarote — A Janela de Saramago, pode ser vista actualmente no Instituto Camões, em Lisboa)

© João Francisco Vilhena

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